“A Humilhação na Cena BDSM” por #dumuz#_RF


Segue um texto muito interessante que minha escrava, {Cypher}, achou sobre humilhação. Peço licença para publicar o texto na íntegra no site, com os devidos créditos ao seu criador, #dumuz#_RF, e a femdombrasil.com.br. Eu altamente recomendo este site, vale a pena acessarem.

A Humilhação na Cena BDSM
#dumuz#_RF

Dominação Psicológica

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Quando se fala em sadomasoquismo a primeira idéia que se tem em mente são correntes, algemas, chicotes e botas. O imaginário físico do sadomasoquismo está repleto de símbolos e fetiches, de modo que, nesses tempos de sadomasoquismo de boutique, basta um corpete negro de couro, uma meia arrastão e um bom par de botas para muita Maria Baunilha se sentir a verdadeira Vênus das Peles.

Entretanto, muitos praticantes do bdsm preferem o que denominam sadomasoquismo psicológico, isto é, formas de dominação e submissão que prescindem de violência explícita.

A civilização é resultado da tentativa do ser humano de se afastar da selvageria explícita dos animais, a necessidade intensa de ser essencialmente diferente de outros bichos. A dominação psicológica seria aquele estágio de perversão do próprio objetivo da civilização: apesar de todo nosso protocolo civilizado, ainda somos selvagens e cruéis, como qualquer besta perdida em algum mato por aí.

Usar o refinamento das artimanhas civilizadas para exercer um poder selvagem ou ser objeto dele é um dos inúmeros atos de rebeldia presentes no sadomasoquismo, revestido da capa de conservadorismo dos valores tradicionais, do bem, da família e da tradição.

É claro que, quando alguém se ajoelha nu diante de quem o domina e se submete a uma sessão de chicotadas, também está sendo humilhado, mas, neste texto, para deleite dos que preferem apenas a dominação psicológica, como limite ou como desafio, falaremos da humilhação como instrumento de sadomasoquismo por si mesma, separada da violência explícita.

A Palavra

O ser humano é um ser que fala, a persona loquens, o ser falante. Pela palavra, começa toda a possibilidade de civilização.

“- Eu te mato!” – grita o motorista no trânsito para o colega(?) que acaba de lhe dar uma bela fechada. O grito, em si, tem o potencial de descarregar a ira que, em outros tempos, o levaria a tomar um tacape e realmente desferir um golpe mortal na cabeça do distraído condutor.

Claro que a expressão verbal pode ser melhorada para “Olha por onde anda, filho da puta!”, pois reservamos termos que chamamos gentilmente “de baixo calão” para poder usá-los quando já estamos no limiar da violência animal.

O famoso texto que circula pela internet “O direito ao foda-se” analisa profundamente as implicações e necessidades atendidas por esse vocabulário tão especial que carinhosamente chamamos de “palavrão”.

Para muitos, o começo do masoquismo está na humilhação verbal, na capacidade de suportar ser ofendido pelos palavrões sem reagir. Como nos primeiros minutos em que se conhecem um dominador e uma submissa e ele gentilmente lhe pergunta:

– E desde quando você se tornou uma puta?

Tal como se perguntasse o que comeu no almoço de ontem.

De igual modo, quando numa situação social absolutamente baunilha, uma dominadora dispara em direção ao seu submisso:

– Ora, Alberto, pare de falar asneira, se não fosse minha boa vontade você broxaria sempre…

A capacidade de ouvir e ficar quieto, sem se defender, sem retrucar, é um bom começo. Mas não é tudo.

Nossa cultura judaico-cristã, incrivelmente, cultivou o que um dia Nietzsche chamou de moral do servo. Alguns vêem aí a raiz do masoquismo, como um fenômeno da cultura ocidental. Por outro lado, a moral do servo, que exalta tudo o que é feio, pobre, sujo, indigno e inumano, negando a beleza, o poder, a inteligência, a vontade de ser humanos, acabou por estabelecer um modelo de humildade como virtude, que, digamos assim, atrapalha bastante a dinâmica moral do sadomasoquismo.

O Masoquista Como Vítima

domme2Esse dado foi exposto cruamente por Sade, por meio de Justine. Justine é, em tudo, uma pessoa virtuosa, entretanto, não cessa de ser castigada e novamente castigada, ao longo de todo o desenrolar da trama sádica (ah, que prazer usar o termo em seu sentido apropriado).

O fato é que, quando o submisso ou submissa se detém no aspecto de suportar as ofensas e vexames impostos por quem domina, ainda o faz por uma espécie de orgulho interior, de resto de força moral que ainda lhe sustenta o ego. O pensamento subreptício é mais ou menos assim:

– “Ela me espanca porque é má. Mas eu ainda sou bom, porque eu sou capaz de suportar tudo o que ela me faz e ainda a amar.”

Sim, para surpresa de muitos, a vítima se sente injustiçada, ou seja, há um prazer no masoquista de estar apanhando injustamente e isso tem o caráter redentor para o seu íntimo. Nesse momento da dinâmica masoquista, a pessoa ainda não se deu conta de quem, sente o impulso masoquista e o sublima – embora entre concretamente no ato masoquista – por meio de uma moral do servo: o servo humilde é bom, o Senhor cruel é mal.

“- Eu sou bom, porque eu não machuco ninguém e eu estou justificado moralmente, porque eu sou objeto da injustiça de minha Senhora/meu Senhor.”

Essa verdadeira armadilha é tão ardilosa que, muitas vezes, um relacionamento sadomasoquista acaba sob a acusação de que a Dominadora/Dominador se excedeu para além dos limites, e o/a masoquista procura seus amigos para lhes dizer:

“- Vejam o que ela/ele me fez. Vejam como ela/ele é má/mau.”

Sim! O relacionamento termina numa acusação moral: o sádico é mau. E num outro juízo moral: eu, que fui bom/boa, fui injustiçada. A injustiça que sofri prova que sou bom/boa.

Essa é ainda a lógica da moral do servo. A injustiça sofrida, justifica a bondade do/da masoquista.

É um erro comum na civilização cristã: Jesus era bom e Jesus sofreu, logo, todos os que sofrem são bons. Essa indução nos leva a crer que o sofrimento pode ser causa de justiça ou bondade e há quem se torne masoquista para se sentir bom de novo, após ser devidamente punido. É o caráter redentor do masoquismo.

Nada há de errado nesse sentimento, pois cada um busca o masoquismo para o prazer na forma que se lhe apresenta. Muitos masoquistas, se se observarem atentamente, notarão que após uma cena bem vivida, há uma sensação de limpeza ou mesmo purificação:

“- Ah! Eu precisava disto!”

O erro não está no sentimento, mas no julgamento implícito que faz o masoquista ser bom e o sádico ser mau.

Entretanto, essa acusação e esse julgamento já estavam implícitos na atitude com que o masoquista entrou na cena de humilhação, porque quem se dispõe a suportar as ofensas e vexames que lhe são impostos já estabeleceu um juízo moral sobre essas ofensas e vexames.

A dominação psicológica se estabelece não quando o/a masoquista se dispõe a suportar o que lhe é imposto, mas se submete a viver essas ofensas e vexames. Não se trata mais de uma concessão, mas de uma necessidade.

A Necessidade de ser Masoquista

De que necessita mesmo o masoquista: da dor ou da humilhação?

Dor e humilhação são meios para atingir um fim, que é o prazer masoquista.

Quando o masoquista detém a escalada da humilhação para, por meio dela, julgar-se bom e condenar o sádico, fazendo-se de vítima, não ocorre o prazer, mas a negação de que o prazer venha do masoquismo. Um raciocínio mais ou menos assim:

“- Agora me sinto bem, pois eu pensei que era mau, mas Fulana/Fulano é que é mau, porque ela/ele é cruel, pois foi cruel comigo, eu não sou cruel, fui objeto da crueldade, da injustiça, logo sou uma pessoa boa.”

Como num coito interrompido, a defesa moral se ergue e cria uma capa de satisfação que pode, inclusive, afastar o masoquista por um bom tempo da prática: “- Eu não! Os sádicos são pessoas doentes, más, cruéis…vou ficar longe disso.”

Passa-se o tempo, e esse masoquista começa a notar o que os masoquistas que não fazem ou que suspendem o juízo moral percebem cotidianamente: há uma pulsão sexual pela humilhação e pela dor, ao menos, a dor psicológica.

Os velhos manuais de virtudes ensinavam que a humildade é nada mais que a verdade a respeito de si mesmo. Não ser mais do que se é – o orgulho – e não ser menos do que se é – a modéstia.

Qual a verdade de um masoquista?

Poderíamos começar dizendo de sua impotência diante da vida: o masoquista não pode ser outra coisa. A despeito de tudo o que tentam dizer os psicólogos existencialistas e os manuais de auto-ajuda, de que a pessoa pode superar tudo, o masoquista sabe que é alguém que precisa da dor física e/ou dor psicológica para sentir prazer.

Isso não é uma condenação, isso é o seu modo de ser…

Façamos uma breve analogia…

Imaginem que vivêssemos num pomar onde só existissem laranjeiras e, então, supreendentemente, nascesse uma mangueira. Por mais que a mangueira se esforçasse em produzir laranjas, ela sempre seria anormal, pois tudo o que ela faz é produzir mangas.

Não creio numa base natural para o sadomasoquismo, pois sua raiz natural é a animalidade sexualmente agressiva do ser humano, que todos têm. As formas de expressão sadomasoquista dependem do cenário cultural, mas o desejo e impulso sadomasoquista acontecem de forma diferenciada nas pessoas, pois alguns explicitam sua animalidade sexual agressiva e outros simplesmente a recalcam, ou desviam para outras atividades.

O importante, em nossa discussão, é que ser sádico ou ser masoquista não são condições de avaliação moral, são modos de ser, de expressar a própria sexualidade.

O treinamento psicológico imposto por um Dominador a uma submissa deve acontecer numa relação em que ao gritar-lhe:“- Puta!” – diferentemente de uma mulher baunilha que se excita pelo “palavrão” inesperado, diferentemente da submissa moral que suporta heroicamente a ofensa, a masoquista baixe os olhos e medite sobre a verdade de ser uma puta, talvez mais reles que uma puta, pois a puta, como profissional, sabe o que faz e cobra pelo que faz e ela é apenas uma amadora que tudo faz de graça, talvez até devesse pagar por alguém se importar de lhe dizer a verdade…aos poucos seu sentimento se debruça com a constatação de que nem puta é, que é um grande nada, silencioso e doloroso vazio que espera, ansiosamente, ser definido pelas palavras do Senhor…

Tal é o poder das palavras: elas criam a realidade.

O Poder de Dizer as Coisas.

katUm passo fundamental para a dominação psicológica é cassar a palavra do submisso. Pode-se começar pela mordaça, mas para quem gosta de jogos psicológicos intensos, sem nada de físico, o desafio se torna muito interessante.

Tudo o que nos ensinaram foi falar. Temos uma cultura que valoriza apenas as pessoas que têm algo a dizer, ou seja, os formadores de opinião.

Uma sugestão importante para Dominadoras e Dominadores é essa: talvez o submisso tenha algo a falar, talvez até a Dominadora quisesse ouvir, mas o submisso não terá o direito à palavra.

Cassar a palavra talvez seja o equivalente a prender um submisso por uma semana em um canil com mais três ou quatro cães e tratá-lo apenas como mais um. Tudo o que um ser humano é, é uma persona loquens, um ser falante. Obrigado a apenas ouvir e cumprir o que lhe ordenam, o ser humano enlouquece gradualmente.

Saber pedir permissão para falar. Por meio de um gesto ou sinal, de modo que o submisso saiba que a palavra deve ser usada com o devido respeito, pois ela não é mais um direito seu, ele usa o poder de palavra de sua Senhora.

Pois o poder criador das palavras só pode ser usado por quem Domina… quem experimentar a simples regra de pedir permissão para falar verá como é difícil manter a atenção e, mesmo, a relação. Porém, no médio e longo prazo, a dominação psicológica se aprofunda, pois pensamos por meio de palavras, e repentinamente, o submisso perceberá uma espécie de impulso de pedir permissão para pensar.

E que realidades os Dominadores devem criar?

Vejo um uso muito conservador da palavra nas cenas bdsm. O mais freqüente é a palavra de segurança, aquela que se diz para a cena parar.

Proponho o inverso, proponho o uso da palavra devastadora, a criação de uma palavra que, uma vez pronunciada por quem Domina, desencadeie todo o processo de submissão no masoquista, independente de onde ele esteja.

Como exemplo, sabemos que o ser humano é particularmente sensível a críticas ao seu corpo. Criar vergonha sobre alguma parte do corpo é uma das estratégias mais simples de continuamente humilhar alguém. Além disso, a vergonha sobre o corpo pode levar a compulsões e obsessões infindas. Assim, numa conversa casual, a Dominadora pode mencionar: “ Sabe, notei que teu saco cheira a meia suja”. Da primeira vez, não dizer mais nada, apenas despertar a atenção e curiosidade do submisso sobre o tema. De tempos em tempos, reforçar o comentário. Se ele retrucar, proibir que retruque, pois é verdade. Consolidada a crença, estabelecer a palavra:, “ – De agora em diante, quando eu lhe disser meia suja, você vai parar o que estiver fazendo, sair e lavar esse saco nojento.”

A princípio, desencadear a ordem dentro das cenas, mas então, um dia, enviar o seguinte torpedo ao celular dele: “MEIA SUJA”. Dependendo do potencial obsessivo-compulsivo do submisso, a reação poderá ir de um ligeiro mal-estar a uma desabalada carreira ao banheiro…de qualquer forma, a palavra cria uma nova reação…

O poder de não dizer as coisas.

Os dominadores podem trilhar o caminho fácil do uso da palavra, mas há outra possibilidade que pode ser bem mais cruel: obrigar o submisso a falar continuamente.

Fato é que falamos antes de tudo para ocultar-nos. Como diz o antigo provérbio: “Como vai é saudação, não é para falar da má digestão.”

Quanto mais a pessoa é obrigada a falar, mais ela tem que se expor. Quanto mais exposta, mais vulnerável e daí se amplia a dominação.

cageNo fundo, todo ser humano é ridículo, pois o que temos de não-ridículo é exatamente a capacidade de ocultar nosso ridículo. E, nesse particular, a violência física não ajuda. Sob violência física o submisso admite qualquer coisa. Depois da centésima chicotada qualquer um admite que é Bin Laden , por exemplo (menos o próprio, é claro).

Dois sofás confortáveis, uma câmera de vídeo, a luz sobre o submisso e a ordem:

“-Fale-me de você.”

Pequenos cortes, dirigindo para aquilo que se quer esconder, perguntas constragedoras, confissões e, principalmente, a posse da fita. Uma fita com uma pessoa nua, sendo estuprada por um avestruz vale bem menos que a calma cena de uma conversa na sala, onde o submisso foi obrigado a confessar que se masturbava com a prova de Geometria nas mãos para se lembrar dos gritos da professora: “- Burro! Burro! Burro!”. São coisas que o hoje bem sucedido CIO de multinacional não gostaria de ver expostas…

Um dos casos mais extremos dessa técnica aconteceu, justamente, na literatura brasileira, naquele que é um dos maiores cornos de toda a história, o Bentinho, ou, se preferem, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Permitam-me, por um momento, tal digressão literária…

Devidamente humilhado por sua esterilidade e pela piedosa traição de Capitu, que ao conceber um filho de Escobar consegue ocultar da sociedade a esterilidade do marido (sei que os exegetas de Machado vão me xingar por essa hermenêutica, mas se Capitu engravidou apenas uma vez é porque, da parte dela, a traição tinha objetivos claros), Bentinho, em vez de calar-se, o que seria uma atitude de respeito para consigo mesmo, seu filho e sua esposa, além dos amigos (lembrem-se do capítulo de desculpas a Dona Sancha, mulher de Escobar), põe-se, não só a falar, mas a escrever.

O resultado, para quem leu, é evidente.O domínio de Capitu sobre Bentinho se escancara a cada página e, por mais que Bentinho testemunhe contra ela, a acuse e queira nos convencer que ela era apenas a traiçoeira portadora de “olhos de cigana dissimulada”, tudo o que ele consegue é nos convencer do quão ridículo ele é, em seu rancor, em sua ira de corno manso e literato.

Sem mover uma palha em sua própria defesa ao longo de todo o romance, já que Bentinho é o todo-poderoso autor, Capitu domina a cena, Bentinho e a nós leitores. A posse da palavra foi completamente inútil a Bentinho e é isso que uma plena dominação psicológica busca: eu lhe dou a vantagem de falar, mas nem assim você cria ou domina alguma coisa. Tudo o que você pode criar é uma imagem ridícula de si mesmo. No caso de Bentinho, a confissão de que é corno e estéril. Como sentenciaria outro personagem do romance: “Corníssimo!”

Em Síntese

O submisso deve ser levado ao ponto de ser capaz de dizer como verdade as descrições de si mesmo que darão prazer a quem o domina.

A quem domina cabe chegar ao ponto de, com sua presença, já humilhar o masoquista. Transformar seu próprio corpo, sua própria imagem em signo dessa humilhação.

Como? A dominadora, o dominador, transformados em objetos?

Sim, pois tal é o estado de dependência da dor e da humilhação do masoquista, em seu modo de ser, que desconhece qualquer noção de sujeito: tudo é para ele um objeto, até o si mesmo. Então, que seja a dominadora, o dominador, o objeto que denuncia e provoca esse estado de humilhação no submisso.

O domínio sobre a expressão do submisso sobre seu estado deve ser a fonte de prazer do sádico, pois a única coisa que o masoquista expressa é, essencialmente, dor, seja ela psicológica ou física.

Por essa limitação extrema das condições de expressão do masoquista é que o sádico se sente mais à vontade quando pode romper o tabu monogâmico, precisando de vários tipos de submissões para se satisfazer.

Mas isso já é tema para outro artigo… :)”